segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Minha mãe é uma mentirosa

Minha mãe é uma mentirosa
(Um conto de Natal)


Aos vizinhos do Spazio Porto Teresopolis
um conto, uma ficção,
uma história com base em personagens reais.
Neli Margarida Stein
Sabe, Papai Noel? É a terceira vez que a professora me faz passar a limpo a carta pro senhor. Acho que é de castigo; digo que é difícil, e ela, que é fácil, se eu treinar bastante. Falou pra eu escrever o presente que eu quero, meu nome, idade, endereço e só. Chegava, o senhor ia entender, nada de ficar explicando porque quero isto ou aquilo. Daí eu apavorei, ah, não profe, minha mãe disse que o que eu quero não é bem presente que Papai Noel dá. Daí ela deixou eu dar uma explicadinha, mas achei pouco, não vai o senhor ficar pensando que eu quero um guarda-chuva porque já tenho um montão de presente.
Esses dias voltei do colégio todo molhado e a mãe me xingou como se eu fosse o Cachorro. Sabe, nosso cachorro se chama Cachorro. Por que não esperou a chuva passar? Gritou, estava furiosa, o que vai vestir? Daí fui lá no canto e peguei uma camisa do pai, velha, fedida. Mas ela não quer que mexa, diz que ele vai voltar. Só faltou me bater, como ele fazia com ela quase todos os dias. Abri os braços pra ver se diminuía um pouco o fedor e minha mãe começou a rir. Disse que eu parecia o espantalho que o vô botava na roça pra afugentar passarinho. E ria, ria.  Daí que chorei: a Tamires tinha me chamado de burro lá na escola. Desde ali o choro ficou dando nó na goela. O “espantalho” devia ser gozação, como o “burro” da Tamires. Tá certo, acertei uma merreca de contas, e o filho da puta do Duda riu com o “burro” como se tivesse acertado todas: e foi só uma a mais do que eu. Segurei a risada, não arrisquei. É que ele gosta de dar nos menores. A professora sempre faz cada um dizer em voz alta quantas acertou, não sei se é pra gente passar vergonha e se esforçar mais, ou pra gente se consolar de que quase ninguém sabe muita coisa. Tamires agora só está com ele. Antes era comigo que ficava conversando no recreio. Nem olha mais direito pra mim, acho que também tem medo de apanhar do Duda.
Bem, eu me agarrei no pescoço da minha mãe, pra ela não me ver chorando quando me segurou por baixo dos braços, e ficamos ali, um não olhando pra cara do outro. Ela ria, mas também chorava; eu é que só chorava. Bobo pra Tamires, pro Duda e, agora, pra mãe? Era demais! Então falei bonito como a professora quer: Vou pedir um guarda-chuva para o Papai Noel. E ela parou de rir. Assim, de soco, até tomei um susto, louco pra sumir dali. Não é só do Duda que tenho medo de apanhar. Mas logo vi, não ia bater. A risada dela parou, e ficamos só chorando. Enxuguei umas lágrimas dela e juntei nas minhas. Aí ela disse que eu era um espantalho lindo, me amava, era a mãe mais feliz do mundo, mas o Papai Noel – o senhor – não dava guarda-chuva, só brinquedo.
A mãe parece que não entende, Papai Noel, eu quero um guarda-chuva pra não me molhar mais e ela não ficar triste por minha causa. A professora disse que a gente pode pedir qualquer coisa pro senhor. Que até mãe pode ganhar coisa. Quem sabe a gente também pede um remédio pra sarna do Cachorro? Ou pra tosse do pai, pra quando ele voltar? Eu fiquei falando, falando, porque não queria ver o choro da minha mãe, nem a cara dela quando disse que era a mãe mais feliz do mundo e me abraçou; porque eu acredito nela, mas achei que estava mentindo. Tem tanta mãe de filho grandão e sabido. Eu, que nem a Tamires gosta mais, que não acerto conta direito, ela ia amar? Eu, de cara de espantalho e burro? Só sei que eu estava triste, como quase sempre estou, e ela chorando. Eu disse, então não chora, porque eu, quando choro, mãe, não estou feliz, estou triste.
Daí pensei um pouco e falei pra mãe, se o Papai Noel não me der o guarda-chuva, não tem importância, nunca ganhei nada dele mesmo. Desculpa, tá, Papai Noel, mas o senhor sabe que é verdade. A professora disse que não era pra eu pensar isso, mas não consigo, eu penso. Deve ser porque tem muita criança, e por isso o senhor não consegue chegar; uma noite só é muito pouco tempo pra dar tanto presente. Ou, será que não lhe contaram que a gente existe? Minha mãe diz que aqui é longe até pra Deus nos achar, que botou a gente no mundo e agora não encontra mais. É muita gente pra cuidar. Pensando bem, o senhor conhece algumas crianças daqui, mas elas só ganham brinquedos pequenininhos. Sei, já está cansado, né? Aqui é mesmo longe pra burro.
Agora tenho certeza, um guarda-chuva, acho que o senhor pode dar. Se não é brinquedo, também não é pesado! Minha mãe, que está sempre brigando, querendo me bater e me abandonar, me beijou a cabeça, nem se importou com meus piolhos e falou comigo bem devagarzinho como às vezes faz com o Cachorro. Então, se ela não estava mentindo que me ama, pode ser verdade que o senhor às vezes conversa com a minha professora e eu ainda vou rir da cara do Duda sem ter medo de apanhar.
Pra fim de conversa, Papai Noel, se o senhor não achar minha casa de novo, pode deixar o guarda-chuva lá na escola, a professora me entrega. Diz que é pro Gabriel.

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